quarta-feira, 3 de outubro de 2012

E do Crime se fez peça...


Em 25 de Fevereiro de 1933, entre as 22 e as 23h, o pacato lugar de Oliveira na freguesia de Soalhães, concelho de Marco de Canaveses, foi abalado por um acontecimento insólito, que é bem revelador do obscurantismo reinante no nosso país na década de trinta e quiçá ainda hoje, ainda que sob formas mais sofisticadas. 
Uma mulher, Arminda de Jesus, domestica, casada com Joaquim Pereira Alves (ausente no Brasil à data do crime), mãe de dois filhos menores, foi espancada e queimada viva, acusada de estar possuída pelo demónio. A vítima, fora visitar uma amiga, Joaquina de Jesus Couto, também chamada Joaquina, a doida, que sofria de ataques de histeria, mas que se julgava estar possuída pelo demónio. Ao chegar a casa desta, encontrou um grupo de mulheres e homens, entre os quais Anastácio Pereira, seu cunhado, que lia um livro que se apurou mais tarde tratar-se de um exemplar do Livra de S. Cipriano, da editora Lello e Irmão, do Porto. Tendo Arminda caído ao chão, possivelmente com um ataque epiléptico, pois andava há tempos adoentada de mal desconhecido, a louca mandou-a pôr fora de casa, gritando que ela estava excomungada e ordenando que lhe batessem. O Anastácio, que interrompera a leitura do livro, surgiu com um crucifixo e um pau, açoitando a vítima até esta proferir as palavras 'Ai meu Deus'. Sendo a Arminda reconduzida para o interior da residência, a louca Joaquina exigiu que a expulsassem novamente e a matassem, porque ela ainda trazia o diabo no corpo. Então, os presentes, todos amigos da vítima e alguns até seus familiares, arrastaram-na para o exterior, levando-a para um barracão, onde foi agredida à paulada e depois queimada, tendo intervindo no crime o citado Anastácio Pereira, António de Queiroz Correia, marido da Joaquina, o filho de ambos, Manuel, de 14 anos, e os seus irmãos Manuel de Queiroz Correia e Francisco de Queiroz Correia. A versão dos acontecimentos não é idêntica nos diversos depoimentos prestados no tribunal pelos criminosos, mas condiz no essencial, podendo concluir-se que os autores de tão macabro caso estavam convencidos de que a morta ressuscitaria. O padre Joaquim Monteiro, pároco de Soalhães, declarou aos juízes que já anos antes apreendera a Anastácio Pereira um exemplar do Livro de S. Cipriano, e que a freguesia, apesar dos seus esforços, continuava a ser um foco de crendice e de superstição, dedicando-se a população à prática de benzeduras e bruxedos, e que era frequentada por muitas bentas e bruxas, entre as quais Olívia Emília, de Gaia, chamada a bruxa de Santa Leocádia, que foi também arguida no processo. 
O caso foi julgado em 30 de Maio de 1934, no Tribunal Judicial de Marco de Canavezes, tendo os quatro réus (o filho menor não foi incluído no processo) sido condenados cada um à pena de seis anos de prisão maior celular seguida de degredo por dez anos ou, em alternativa, na pena fixa de degredo por vinte anos, sendo sempre o degredo em possessão de primeira classe, no imposto de justiça de 800500 com os acréscimos legais, fixando como indemnização aos representantes da vítima a quantia de 6.000$00 a pagar solidariamente por todos os réus...'. 
Os réus vieram a ser soltos no dia 6 de Novembro de 1946, após mais de treze anos de reclusão (desde a data do crime, em que foram presos), por terem beneficiado de várias amnistias. 
A imprensa da época fez-se eco de tão insólito acontecimento, que se encontra relatado no jornal de Notícias de 28 de Fevereiro de 1933. O julgamento foi descrito em O Primeiro de Janeiro, de 24 e de 31 de Maio de 1934. 
É com base na notícia de O Primeiro de Janeiro, do dia 24, cujo início serve aliás, de epígrafe ao livro, que Bernardo Santareno escreve a sua peça “O Crime de Aldeia Velha”. 
O crime de Soalhães é, contudo, apenas o pretexto aproveitado por Santareno para a construção de um texto que se afasta essencialmente dos acontecimentos reais e permite ao autor não só exprimir algumas das preocupações que sempre o atormentaram como manifestar as dúvidas profundas que alimentou até ao fim da sua vida sobre a religião, o sexo e a morte. 
Denunciando o atraso cultural e social das populações rurais e o clima de superstição reinante em muitas aldeias do país, Santareno evoca também essa espécie de sub-religião doméstica cultivada com a ajuda de bruxas e feitiços. 
Embora 'reverente' do magistério da Igreja Católica não hesita a mesma em rebelar-se contra o poder clerical quando o ministério eclesiástica parece revelar-se impotente para resolver os problemas criados pela ignorância, pelo fanatismo e por alguns costumes ancestrais cuja raiz se pode encontrar numa sexualidade longamente reprimida. 
Nesta peça de excelente carpintaria teatral, a acção desenvolve-se num crescendo, que atinge o clímax com a morte de Joana na fogueira, voluntariamente imolada às chamas como a Santa Joana de Bernard Shaw – e que aspira assim redimir todos os males da aldeia. 
O tom está dado desde o início do primeiro acto, e nada poderá evitar a tragédia. Entre a exaltação da virilidade de António e Rui e a reiteração da pureza do padre Júlio, um padre tímido que hesita nos momentos cruciais, cujo fascínio carnal pela rapariga se mantém nos umbrais da ambiguidade, e que se revela um alter ego do autor, o coro sibilino das mulheres conduz à consumação do crime. Mulheres velhas e mulheres novas, unidas por uma cumplicidade a que não são alheias frustrações sexuais e vidas amarguradas, e que Joana desafia com sobranceria. Ela é uma mulher 'diferente' e por isso pagará com a morte o preço da diferença numa sociedade que não admitia (e não admite, mesmo quando finge fazê-lo) os comportamentos que transgridem a ordem estabelecida, quando a sua violação é feira à luz do dia. Ao recusar o casamento, ao recusar os homens, que lhe causam horror, devido a recordações familiares que a traumatizaram, Joana incorre na censura, na aversão e finalmente na condenação das outras mulheres, que não suportam a confrontação com os seus próprios fantasmas. As mulheres de Aldeia Velha, enrodilhadas nas contas dos terços e enoveladas nos venenos dos feitiços, querem um exorcismo porque se sentem, também elas, possuídas pelo espírito do mal e julgam poder reencontrar a paz através de um esconjuro redentor, ainda que praticado em terceira pessoa. 
Emprestando ao texto a sua formação de médico, a sua experiência de psicólogo, a sua vocação (frustrada) de sacerdote, o seu conhecimento da vida, Bernardo Santareno, em O Crime de Aldeia Velha, transmite-nos as suas ansiedades, os seus temores e as suas dúvidas, e revela-nos o conflito interior de natureza religiosa que o acompanhou até à morte. Sintomaticamente, a última frase da última cena da peça, proferida pelo Padre Júlio, sobre a Ladainha monótona dos Padre-Nossos e Avé-Marias é: 'Tenho medo... Tenho medo! Tenho muito medo!!!...

1 comentário:

  1. A maior parte dos portugueses desconhece que este crime aconteceu, mas aconteceu, foi no século XX, até está bem documentado na Biblioteca Nacional. Vivemos em Portugal, aquele país que, segundo dizem, é de "brandos costumes" (imaginem que não fosse), onde, segundo também dizem, existe liberdade religiosa (teoricamente, claro). Ficamos pelos temores e pelas dúvidas, ou diremos, como o padre Júlio da peça de Santareno: "Tenho medo...". São conflitos interiores da nossa natureza religiosa, oficialmente cristã, na prática diabólica. Inquietante, mais ainda quando dizem por aí que os portugueses começaram a ter "distúrbios diabólicos", até se justificarão exorcismos. Entre a religião mal compreendida e a loucura vai o passo de um anão, esperemos que os actuais exorcismos não façam outra "Arminda de Jesus" em terras lusitanas. Afinal, a História "ensina que a História não ensina nada" (Hegel).

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